Quando o futsal se joga para além do som: a integração competitiva da AC Surdos de Águeda
No pavilhão da Escola Básica Fernando Caldeira, em Águeda, o treino decorre sem apitos nem gritos. A bola bate nas paredes, os movimentos repetem-se até à exaustão e a comunicação faz-se por sinais claros e precisos. Um pé bate no chão para interromper o exercício. Mãos levantadas indicam recomeço. É assim que trabalha a AC Surdos de Águeda, uma equipa composta integralmente por atletas surdos que decidiu dar um passo inédito: competir, em igualdade competitiva, contra equipas de ouvintes.
Depois de 25 anos a disputar o Campeonato Nacional de Surdos, o clube de Águeda procurou um novo desafio e encontrou-o na Liga Census, uma competição amadora do distrito de Aveiro, reconhecida pela Federação Portuguesa de Futebol. O objetivo era claro: testar limites, crescer competitivamente e quebrar uma barreira que nunca foi técnica, mas comunicacional.
Para o treinador Diogo Teixeira, a decisão foi amadurecida ao longo do tempo. A vontade de competir num contexto diferente existia há anos, mas exigia abertura do outro lado. A resposta acabou por surpreender. As equipas adversárias aceitaram de imediato o desafio e mostraram disponibilidade para se adaptar, dentro e fora da quadra.
Essa adaptação foi essencial. Durante os jogos, situações simples tornam-se complexas: uma falta assinalada, uma paragem de jogo, uma explicação do árbitro. Para responder a essas dificuldades, surgiram soluções práticas. Árbitros passaram a assinalar decisões com gestos mais amplos, recurso visual claro e, em alguns casos, até bandeiras, tornando o jogo mais acessível sem o descaracterizar.
Em campo, a AC Surdos de Águeda também teve de se ajustar. A intensidade das equipas ouvintes, a comunicação verbal constante e o ritmo elevado obrigaram a equipa a elevar o nível físico, a pressionar mais e a recorrer a soluções táticas mais elaboradas. O futsal jogado passou a ser mais exigente, mas também mais rico.
A evolução é visível. A estreia foi dura, com uma derrota expressiva, fruto da ansiedade e da adaptação a um contexto completamente novo. Jogo após jogo, a equipa foi ganhando confiança, encontrando formas alternativas de comunicação através da mímica e da leitura corporal, reduzindo distâncias no marcador e competindo de forma cada vez mais organizada.
A dimensão humana do projeto não se sobrepõe à competitiva. Caminham juntas. O contacto com as equipas adversárias gerou convivência, curiosidade e aprendizagem mútua. Jogadores ouvintes começaram a aprender gestos em Língua Gestual Portuguesa, a perceber códigos visuais e a adaptar comportamentos dentro do jogo. Fora dele, surgiram amizades e respeito.
Para David Lourenço, capitão da equipa, o impacto vai além do futsal. Depois de experiências frustrantes em contextos competitivos com ouvintes, onde a barreira comunicacional se tornou pesada, este projeto representa finalmente a possibilidade de competir sem concessões, com dignidade e pertença.
A AC Surdos de Águeda continua sem vitórias na Liga Census, mas o resultado deixou de ser o único indicador. A equipa cresceu, adaptou-se e passou a ser reconhecida pela organização, pelo fair-play e pela alegria com que compete. Para a própria Liga, a presença do clube trouxe uma nova perspetiva sobre o que significa competir e integrar.
No fundo, o futsal cumpriu aquilo que sempre prometeu quando é jogado a sério: ser linguagem comum. Mesmo quando o som não existe.
Fonte: MaisFutebol - Rui Almeida Santos